A
história dos grupos indígenas brasileiros é uma história de massacre e
aniquilação. Como bem diz modernamente o antropólogo Eduardo Viveiros de
Castro, o resultado desse longo percurso foi transformar os índios em pobres.
Centenas de povos desapareceram por completo ao longo dos séculos, e os que
sobreviveram perderam boa parte de sua língua e cultura, tendo se convertido
nesses pobres.
Ao se
associar progresso e ordem em nossa história - e em nossa bandeira -,
estabelece-se também uma maneira como o progresso deve se dar. Para a
República, tratava-se de uma nova ordem, de um novo deslocamento para a frente,
visando afastar-se do Império, que ficara no passado. E pode-se imaginar que
boa parte da desordem militar que se seguiu à proclamação da República adviesse
mesmo da falta de uma compreensão unívoca sobre o sentido de progresso.
Era mesmo
impossível haver uma percepção única de seu significado, já que progresso era
das noções mais populares no período, de tal sorte que qualquer um poderia lhe
atribuir uma conotação muito particular. Mas não é desprezível a forma concreta
que vai servindo para consolidar o progresso no mundo, conforme seus adeptos
mais fervorosos nos demonstram. Vejamos, por exemplo, essa situação
ilustrativa: "Os bugreiros enfeitam as suas espingardas com os dentes dos
índios por eles mortos [ e] vendem aos fazendeiros orelhas secas de índios por
preço de dúzias[1]".
Essa
informação não nos chega de um tempo demasiado antigo, e não parece ter relação
com o progresso. Tampouco nos chega de um lugar muito distante. Vinha da região
de Bauru, no estado de São Paulo, de uma época em que se construía a Estrada de
Ferro Noroeste do Brasil, que avançava pelos "sertões bravios" em
processo de conquista pelo café. Os índios kaingang eram o maior obstáculo.
Eliminá-Ios pura e simplesmente era a estratégia para o avanço dos trilhos.
As
matanças de índios eram chamadas dadas, quando se caía de assalto sobre as
aldeias, eliminando a todos ou poupando mulheres e crianças para vendê-los aos
brancos. A organização das dadas era decidida pelos fazendeiros e moradores da
região, mas contava com larga compreensão e apoio do governo paulista - que,
com o tempo, acabou se envolvendo diretamente no conflito, enviando batalhões
da Polícia Militar para reforçar a ocupação do território.
O diretor
do Museu Paulista, o cientista Hermann von Ihering, foi muito criticado por
apoiar abertamente os colonizadores e suas dadas
em artigo publicado no jornal O Estado de
S. Paulo. Em 1911, procurou defender-se dizendo que havia, no Brasil, três
programas dentre os quais escolher para enfrentar a questão indígena: o de José
Bonifácio (1823), o seu próprio (1908) e o do Marechal Rondon (1910). O seu programa
considerava os "paleo-brasileiros" plenamente responsáveis perante o
direito, enquanto os demais programas os consideravam tutelados pelo Estado.
Mas Von Ihering não estava só, conforme ele próprio demonstrou, citando uma
manifestação do Club de Engenharia do Rio de Janeiro que dizia:
"Exterminem-se os refratários à marcha ascendente da nossa civilização,
visto como não representam elemento de trabalho e de progresso[2]".
A
associação entre sangue e progresso fazia-se inevitável, como orelhas e dentes
de kaingangs atestavam. Mas situações semelhantes ocorriam à época por toda
parte do mundo onde trilhos de estradas de ferro rasgavam continentes,
incorporando imensos territórios ao sistema capitalista mundial e marcando com
o progresso a carne dos povos conquistados. Entre 1870 e 1900, a rede
ferroviária mundial saltou de 130 mil para 600 mil milhas. Em Londres,
progresso era sinônimo dessa enorme revolução que o capitalismo industrial
levava aos quatro cantos da Terra, e o conceito, como um vagão, acompanhava a
expansão ferroviária e tudo o mais que, pelos seus trilhos, passava a circular
nos confins do globo. Os índios simplesmente estavam no meio do caminho do
progresso. E o destino reservado a eles na sociedade brasileira nos obriga a
fazer um esforço para restaurar o lugar que ocuparam na constituição da
alimentação do país.
O
primeiro passo é, em cada situação concreta - como a da culinária caipira -,
arrancar os índios da generalidade a que a historiografia os confinou para se
ter maior clareza sobre a permanência de seus hábitos. Centenas de povos, como
os que existiam à época dos descobrimentos, não podem ser reduzidos ao conceito
genérico de "índio" sem que se perca o valor explicativo que
buscamos. Especialmente os troncos tupi e macro-jê, ramificados em inúmeras
línguas e etnias, povoavam a Amazônia, o Brasil Central e o Sul e Sudeste à
época da chegada dos colonizadores.
Já
frisamos a importância decisiva dos grupos guarani, do tronco tupi, para a
colonização da região, mas mesmo eles possuíam uma diversidade interna notável,
sendo os principais grupos étnicos guaranis desse território os kayová, os mbyá
e os nandéva. Segundo a classificação corrente, o tronco linguístico tupi
apresenta cerca de quarenta línguas.
Do ponto
de vista alimentar, há inúmeras diferenças, tais como tabus específicos em
relação aos animais (os que eram comestíveis para uns não o eram para outros
etc.). Sobre eles, a crônica colonial não deixou de registrar informações
úteis, mas, quando os estudos sistemáticos de antropologia e arqueologia se
ocuparam dos índios, no século XX, muitos grupos já estavam extintos ou
irremediavelmente afetados pela interação com a sociedade envolvente.
Poucos
documentos antigos guardam tanto interesse para a caracterização alimentar dos
guaranis quanto os valiosos escritos de Antonio Ruiz de Montoya (1585-1652), um
jesuíta peruano que fundou várias reduções na região de Guaíra, hoje cidade de
Cambé, no norte do Paraná. A obra de Montoya, especialmente a dedicada à língua
guarani, registra palavras e processos de trabalho de valor inestimável para a
reconstrução culinária.
Para
saber o que os guaranis comiam, são também importantes as informações obtidas
em período mais recente, como a breve etnografia que o padre Franz Müller[3]
fez desses índios na bacia do Alto Paraná em fins do século XIX. Tanto os
relatos de Montoya quanto os de Müller são documentos nos quais já aparecem,
com algum destaque, elementos europeus adotados pelos índios, como o porco e
mesmo a galinha - esta que, segundo estudos, inicialmente provocou repulsa nos
índios tupis, tão logo ocorreram os primeiros contatos com os europeus[4].
Mais tarde, mesmo grupos que não comiam milho passaram a plantá-lo para criar
galinhas, que vendiam aos europeus, conforme relatou o padre João Daniel em seu
livro sobre a Amazônia[5].
O milho,
as abóboras variadas, a araruta, a mandioca, o inhame, a batata ariá e o
amendoim já estavam domesticados no continente sul-americano entre 10 mil e 7
mil anos A. P. [antes do presente][6].
Do mesmo modo, 5 mil anos A. P., encontravam-se domesticadas a lhama e a alpaca,
no Peru; e 2 mil anos A. P., o porquinho-da-índia e o pato barbárie[7].
Descobriram-se, ainda, resíduos cerâmicos com
traços de consumo de milho, abóbora, amendoim, feijão e pacay (ingá) na costa
peruana e no Equador, datados de 5.300 a 4.950 anos A. P[8].
Também sobre o Brasil há estudos modernos que frisam a presença do milho, além
de outros alimentos, nos vastos sertões pré-coloniais, quebrando o monolitismo
da interpretação baseada nas crônicas quinhentistas a setecentistas sobre a
alimentação indígena centrada na mandioca.
Somam-se
a essas descobertas aquelas que nos dizem de uma provável origem migratória dos
tupis-guaranis e dos tupinambás do Sul e Sudeste do país. Originários da
Amazônia Central, eles teriam emigrado em duas direções: uma, dos tupinambás,
do centro da Amazônia, seguindo o curso do grande rio, até a ilha de Marajó, e
de lá descendo pelo litoral até a altura do Rio de Janeiro; outra, guarani,
para oeste da Amazônia, descendo até a região do Chaco, em paralelo à
Cordilheira dos Andes e, de lá, flexionando para leste até atingir a costa,
ocupando ainda o Sul do Brasil, o Uruguai e o Norte da Argentina. É o
deslocamento guarani que nos interessa aqui - representado no mapa da página
seguinte.
Outra
vertente de estudos antropológicos mais recentes tem se dedicado a estudar a
relação dos índios com a biodiversidade[9]
aprofundando a ideia de que o manejo de
espécies na floresta também faz parte da agricultura, ainda que não siga os
padrões tradicionais de roçados, tomados usualmente como o princípio da agricultura. Os estudos mostram a enorme
diversidade de plantas conservadas ou desenvolvidas entre dezenas de povos
tribais - 94 variedades de mandioca entre os wajãpi (tupi-guaraní), 70 entre os
cubeo, piratapuia e tukano, tikuna e sateré-mawé: 13 de milho e 56 de
batata-doce entre os kayapó-rnebêngôkre: 27 de amendoim entre os kaiabi
(tupi-guarani) e assim por diante -, colocando em xeque a noção corrente e
estática de domesticação. Os vínculos afetivos dos índios com o âmbito
florestal, que poderiam também ser uma forma de domesticação, evidenciam que,
para esses povos, a distinção não se aplica do mesmo modo que fazemos hoje. A
floresta é parte integrante do seu domus
verdadeiro.
Consideramos
que a agricultura, como a dos guaranis, pode nunca ter surgido como estamos
acostumados a imaginar – uma passagem da pesca, caça e coleta para o
sedentarismo e a cultura da terra. Ao contrário, hoje exige-se que se tome a
domesticação como uma via de mão dupla, pois ela
faz espécies
diferentes dependentes de outras espécies específicas, como seres humanos ou
formigas. Mas também limita fortemente a mobilidade do domesticador. Os
agricultores determinam o local para as suas plantas; mas plantas cultivadas
respondem como espécie, e forçam os agricultores a se sedentarizar em larga
medida[10].
O
resultado é que os índios humanizam a floresta como extensão do que entendemos
por âmbito doméstico.

Esse
conjunto de ideias que revolucionam o entendimento da história indígena mudará
drasticamente também a compreensão da trajetória de culinárias populares
brasileiras que resultaram de forte interação histórica colonizadora com grupos
tribais específicos. É falso, então, considerar os guaranis como praticantes de
uma agricultura rudimentar, se considerarmos a complexidade do manejo florestal
como parte integrante da agricultura.
Entre os
guaranis, o trato da terra ainda se faz, como no passado, praticamente durante
o ano todo, tendo destaque as várias fases da cultura que desembocam na
colheita ritual do primeiro milho. Mas muitas eram as variedades cultivadas,
destacando-se o milho duro, destinado inclusive à venda depois da colonização, e
o milho mole ou saboró. O primeiro
era e é plantado uma única vez por ano, embora outros povos latino-americanos o
façam mais e uma vez. O saboró, como
o chamam os caboclos,
de
grão mole, que frutifica de dois a três meses e amadurece em quatro tem caráter sagrado, sendo considerado
a principal dádiva dos seres míticos
chamados Djakairá (entre os Kayová),
e é também o que melhor se presta para a
fabricação da chicha [bebida fermentada]. As roças de milho mole e milho duro
se fazem em separado [ ... J. Um e outro se plantam uma só vez por ano, entre
os meses de agosto e outubro,
iniciando-se a colheita mais ou menos em janeiro, quando se realiza a grande festa do avati-mongaraí[11].
A mongaraí, que o antropólogo Egon Schaden
considerou uma verdadeira religião do
milho, também chamada de batismo do milho,
consiste em uma série de procedimentos mágicos de um ciclo cerimonial que avança por oito fases
distintas: batizar a terra antes de
queimar a roça; a bênção da roça; a bênção do início do plantio; o combate da praga que come o milho
quando este tem meio metro de altura;
quando se forma o grão; quando já se pode colher o milho-verde; quando se preparam as
primeiras comidas com milho-verde; e,
por fim, quando se faz a primeira chicha. Nesse conjunto de rituais, situa-se o
batismo das crianças, que então recebem o nome guarani que representa a alma -
o "nome alma"- do indivíduo. No ritual, os pais devem levar à casa de
orações (opy) o mbojapé, alimento preparado com farinha de milho e água e assado
nas cinzas de uma fogueira; pode ser feito com qualquer variedade de milho,
exceto o de pipoca.
Associadas
ao milho fazem-se também as roças de feijão (duas vezes ao ano), das quais uma
coincide com a do milho (feijão-das-águas); às vezes são plantadas entremeadas,
outras, plantadas em dezembro e colhidas em abril. Do mesmo modo, em abril
também se colhe o arroz, adotado dos brancos. O plantio da mandioca se dá em
maio e a limpa, em março do ano seguinte. O amendoim planta-se em janeiro e
colhe-se em julho e assim por diante. Interessante notar que, afora os
alimentos tradicionais, obtidos pelas famílias por meio de trocas e sempre
levados pelos índios em suas mudanças de residência, os alimentos que pertencem
aos cultivos dos brancos são adquiridos de não indígenas da vizinhança ou no
comércio local.
A
mandioca não tem a importância do milho, o que se percebe pelo fato de não
estar cercada de rituais. Ela é indispensável, porém, nos meses em que o milho
começa a escassear. Tem destaque especial a variedade doce, consumida como
legume cozido, e quase só nas comunidades do litoral, em especial entre os
kayová, se utiliza a mandioca-brava na feitura de farinha[12].
Seguindo
o que o padre Franz Müller[13]
descreveu no final do século XIX,
podemos ter uma ideia de como era a moradia guarani. No centro da casa estava o fogo, em torno do
qual se reunia a família; sempre aceso, abanado ou soprado para que não se
extinguisse, aquecia a água para se tomar o mate a qualquer hora do dia. Sobre
ele, do teto, pendia um gancho de madeira no qual se pendurava um caldeirão sem
tampa, a uma distância controlada do fogo; o conteúdo era sempre revolvido com
uma vara que fazia as vezes de colher. Fora da casa havia outro fogo, sobre o
qual as índias preparavam muitas das comidas, fossem cozidas ou assadas. Os
fogos sobre os quais trabalhavam eram a parrilha, o assador, a brasa do carvão,
e as cinzas, sobre as quais eram colocados gomos grandes de taquara (tacuapi). Faziam cozidos no tacuapi e, em geral, carnes e peixes
sobre os outros fogos, além de legumes, como milho-verde, mandioca e batata;
preparados de milho envoltos em folhas eram cozidos sobre as cinzas.
A caça e
a pesca constituem capítulo à parte da alimentação dos guaranis. Todos os
grupos do alto Paraná comiam caças muito diversas, variando entre um e outro
grupo aquelas que eram consideradas tabu. Certos peixes, cobras, lagartos e
alguns animais de pelo se prestavam a essas distinções. Informações
arqueológicas dão conta de sítios líticos com traços de inúmeros animais, sendo
mais frequentes o veado-mateiro e o cervo-do-pantanal, seguidos de bugio,
gambá, porco-do-mato, queixada, anta, capivara, mico, paca, preá, jaguatirica,
ratão do banhado e ouriço-cacheiro: aves
como perdiz, marreco e outras; peixes, como corvina de rio e bagre; répteis
como tartaruga, jacaré e lagarto; e moluscos[14].
E, de novo, o padre Franz Müller nos
informa sobre os costumes dos grupos que conheceu no século XIX:
com exceção do
jaguar, ariranha, cachorro, morcego, cachorro do mato e raposa se comem todos os mamíferos, até
o rato doméstico e as ratazanas. Entre
os pássaros, estão excluídos como alimentos os urubus, os falcões, as garças,
as andorinhas, as corujas; estas últimas talvez por razões de superstições,
"já que elas anunciam a morte de algum membro da família". Víboras e
lagartixas não se comem, mas se comem as iguanas. Do jacaré, só se come o rabo.
Tartarugas, tanto de terra como de água,
são comidas por uns e rechaçadas por outros; estes últimos, talvez também por
razão de superstição. Os ovos, de toda classe de aves e répteis, com exceção
dos de jacaré e lagartixa, são iguarias, mas não preparados em água e sim
endurecidos ao fogo. Também os insetos abastecem o menu indígena: o crocante
abdome da rainha das formigas podadoras, as gordas larvas de coleópteros, a
larva da mariposa noturna e as ovas de abelhas. Os peixes servem quase todos
para a alimentação, a piranha [ ... ] sem dúvida está excluída. Alguns que
consideram as enguias como cobras as rechaçam, enquanto outros as comem. O mesmo vale para as arraias, cujo ferrão e a
carne são considerados por alguns, naturalmente sem razão, venenosos[15].
Os
animais comestíveis eram, em geral, assados inteiros, com vísceras, pele, pelos
e escamas, e, uma vez prontos, comidos em seguida, sem qualquer tempero. Os
maiores, como a anta, eram eviscerados e cortados em pedaços, mas assados com
pele e pelo.
Os
vegetais eram aqueles de cultivo ou coletados. Abundavam as batatas de diversas
espécies; os carás, também variados; o inhame; as abóboras de dois tipos, andaí e curapepé[16]; os feijões, também de inúmeras variedades, os
que trepam, os que têm ramos,
=os arbustivos, os de grãos
grandes, os pequenos, os amarelos, os vermelhos,
os pintados[17];
além de amendoins de três variedades distintas,
sendo uma delas três vezes o tamanho das demais. Os guaranis faziam óleo do
amendoim e frequentemente moíam o grão para fazer beijus, misturados à farinha
de milho, ou ainda sob a forma de mbeyú-chini,
um tipo de biscoito de longa conservação ao qual se acrescentava mel, criando
uma verdadeira guloseima[18].
Entre as
várias frutas silvestres, encontravam-se as anonáceas, o aguaí (uma sapotacea), os araçás, diferentes
frutos de palmeiras, o bacuri, a guajuvira e a jurubeba, além de uma laranja
amarga, cuja origem talvez tenha sido uma variedade introduzida pelos jesuítas
que se tornou espontânea. As frutas eram, em geral, comidas cruas, sendo
algumas cozidas ou assadas (ao passo que o amendoim era descascado e torrado,
ou fervido em água com a casca)[19].
Segundo Montoya, acrescia-se a essa relação a goiaba, o maracujá, o ingá, o algarrobo,
a pitanga, o guabiju, a guaríroba, os frutos do guaimbê, das figueiras e das
cactáceas, o tarumã, a amora negra e o jenipapo[20].
As
comidas derivadas do milho eram muitas, e algumas delas, com pequenas
modificações, são identificáveis até hoje como ancestrais de muitos alimentos
da tradição considerada brasileira. Os
milhos
podiam ser consumidos
verdes ou maduros, conservados na espiga, debulhados, pilados ou moídos. O grão
inteiro podia ser cozido, só, com carne, ou com verdura; ou podia ser tostado,
ou torrado. Pilado, podia ser cozido, produzindo curê ou mingau. Mascado, podia
ser transformado em bebida fermentada (chicha). De outros modos podia
transformar-se em mingau ou bolo[21].
Os
principais preparados guarani com milho eram os seguintes:
1. mbodjape: pão de milho feito com milho
maduro, previamente tostado;
2. mbyta: pão de milho preparado com milho
não maduro, apenas macerado;
3. chipa caure: pão de milho de formato
cilíndrico, cozido no assador;
4. mbedju: panquecas de milho-verde
postadas sobre brasas;
5. cai repoti: farinha de milho cozida em
gomos de bambu;
6. rora: sêmola de milho embebida em
gordura, sal e água e fervida;
7· mbayapi:
a polenta;
8. typihu: sopa de milho;
9. huiti piru: farinha de milho tostada;
10. mbaypy hê-ê: farinha de milho adicionada
a água fervente com mel;
11. kivepe: purê de abóbora com farinha de
milho;
12. cagedjy: milho cozido em cinza;
13. djopara: milho fervido junto com
feijões;
14. avati pichinga: milho assado na
frigideira, sem gordura, para que
arrebente;
15. cangûit: cerveja de milho ou chicha.
Nas
palavras do padre Müller, "o milho tenro assado sobre as brasas lembra o
gosto das castanhas; mandioca e batata assadas em cinza ardente têm
decididamente melhor gosto que fervidas em água. Um certo tipo de farinha de
milho envolta em folhas de pinguao é cozida em cinza ardente, e se a ingere
quente é de um sabor ótimo[22]".
Não menos
importante é registrar o modo como os índios faziam suas farinhas de mandioca.
A raiz era primeiramente cozida, depois seca ao sol e finalmente pilada até
virar pó. Bem diferente de como seu feitio é usualmente registrado, com base em
técnicas de índios da Amazônia ou de outras partes do Brasil- embora essas
técnicas também fossem usadas pelos guaranis para obter o polvilho, ralando a
mandioca crua e passando em água, secando ao sol e depois levando aos tachos o
polvilho e a polpa ralada para fazer a farinha. Também a mandioca pubada era
enterrada por quatro a oito dias em pântanos; quando apodrecia, adquirindo uma
consistência de purê, era então deixada ao sol para secar e depois pilada. Isso
revela que os índios tinham conhecimento empírico de que a fermentação é,
também ela, uma forma de cocção. Com a farinha de mandioca, preparavam popi, panquecas fritas em gordura, ou mbdju (beiju). Da mandioca pubada, com a
fermentação interrompida no quarto dia, "peladas e fervidas [ ... ] se
obtém uma comida aromática que ao gosto europeu resulta antipática (com odor
fecal)[23]".
Se nos
concentrarmos, porém, na fonte extraordinária que é Montoya, muitas outras
referências nos dão pistas sobre o comer guarani. Ele cita inúmeras pimentas e
frutas, como o ananás, a pacová, o gravatá, o fumo, os pinhões - que, em estado
natural, se conservavam por muito tempo, ou podiam ser enterrados para curtir e
azedar, colocados no fundo de banhados, em águas, para se conservar fora do
alcance das pragas, ou, ainda, transformados em farinha, da qual se fazia pão.
Menciona ainda uma planta que se desenvolvia na água, sobre as pedras, que
lembrava o agrião; diversas variedades de palmeiras que resultavam em farinhas;
as amêndoas dos coquinhos e a produção de óleo; e variados fungos assados na
brasa.
Montoya
também nos dá notícia das várias maneiras de consumir alguns produtos. Os
feijões, por exemplo, podiam ser moídos, comidos antes de granar ou usados
verdes, em guisados[24].
Fala-nos também dos porcos assimilados pelos índios, que podiam ser capados e
gordos, e se refere ao consumo da banha[25];
reúne, ainda, as palavras do vocabulário guarani que nos remetem à clara de ovo
cozida, à clara crua, à gema, ao "bater ovos para fritar[26]"
e às tortillas de ovos[27].
Registra técnicas de cocção pouco conhecidas do olhar ocidental, como o
cozimento ao vapor: pituí, ou
"água do vapor da boca da panela quente[28]".
Não lhe escapa a originalidade da paçoca - apaçog,
em sua grafia -, semelhante ao pesto, isto é, redução pilada de carnes,
inclusive peito de aves[29].
Recolhe os vocábulos que se referem ao leite cru, ao leite cozido, ao talhado,
bem como ao leite de amendoim e de árvores[30].
E fala de uma classe de sobremesas, isto é, coisas que para ele se assemelhavam
aos doces servidas na sequência das
refeições, como preparados da banana, da batata-doce e do mel, ou "como
sobremesa aquelas raízes crua cujo sabor
era como raiz de pau, embora muito macia[31]".
Outro
aspecto importante relacionado com o cozinhar são os utensílios utilizados,
desde os instrumentos cortantes (as facas feitos de tacuapi (taquara ou bambu) até as "lindas travessas de
terracota", na descrição de Franz Müller - que achou-as parecidas com
nossos pratos para torta -, passando pelos recipientes para cozer ao fogo,
feitos dos gomos de bambu verde cortados em um extremo. Depois do declínio da
indústria cerâmica dos guaranis, esses utensílios foram substituídos por
aqueles feitos de cabaça e, raras vezes de madeira, em formatos pequenos ou
grandes, ovalados e retangulares - ou pelos de origem europeia, feitos de lata.
Especialmente a panelas, "outrora de terracota, foram substituídas completamente
por mercadorias de alumínio ou ferro, e já é [era] difícil encontra um exemplar
da velha indústria[32]”.
Por uma curiosa destinação registra a
literatura que, com o tempo, as índias foram substituída, pelas negras livres na feitura das panelas de
barro. Por fim, come colheres, usavam pedaços de cabaça ou, entre os índios
chiripá, de chifre de vaca, sendo as conchas grandes sempre feitas de cabaça.
Outros
traços indígenas permaneceram vivos e ativos entre os colonizadores. Os
analistas desse encontro de culturas têm destacado práticas agrícolas, como a
coivara; objetos tecidos como a rede e o tipiti, para o trato com a mandioca;
elementos de construção, como a arquitetura das casas bandeirantes e assim por
diante. Ou seja, uma série de expedientes adaptativos que, de tão importantes,
ficaram para sempre. Mas certamente os domínios fundamentais foram os da
culinária e da língua guarani, do tronco tupi.
Além da
toponímia, do nome das espécies úteis, o tupi penetrou fundo na língua
brasileira. Essa convergência foi conscientemente buscada como expediente de
evangelização e colonização, já que o bilinguismo era estimulado pelos
jesuítas, que selecionavam os pregadores com esse critério. Tornou-se fato
também notável no ambiente doméstico dos paulistas, seja em razão de casamentos
interétnicos, seja da formação das novas gerações, conduzida em parte por amas
de leite:
Os pais no interior
da capitania de São Paulo estabeleciam casas na cidade para os filhos serem
educados pelos jesuítas e os deixavam aos cuidados de uma índia [ ... ]. Dessa
forma, a fase de aprendizado do português escrito nos colégios dos jesuítas foi
também um período de exposição ao tupi no ambiente doméstico por meio da índia
responsável pelas crianças na ausência dos pais. A presença dessas mulheres na
vida dessas crianças não ocorria apenas na fase escolar, mas desde o nascimento[33].
Era de
esperar não só o aprendizado da língua da terra como também o desenvolvimento
do gosto pelas comidas nativas.
Deve ter
sido de forma gradual, muito devido à convivência forçada com o índio, que o
milho acabou se impondo como solução alimentar mais geral na Paulistânia. Ele
aparece na crônica colonial sobretudo ligado à pobreza e à proximidade com os indígenas.
“A canjica é o sustento dos pobres, pois
só a pobreza dos índios e falta de sal [ ... ] podiam ser inventores de tão
saboroso manjar", escreveu Manoel Fonseca, destacando o lugar privilegiado
do milho na alimentação[34].
Por isso, conforme se sabe, o sucesso das incursões pelo sertão dependia em boa
parte do milho. Como registrou Pedro Taques, "toda pessoa de qualquer
qualidade que seja que for ao sertão a descobrimentos será obrigada a levar
milho, feijão e mandioca, para poder fazer plantas e deixá-Ias plantadas,
porque com esta diligência se poderá penetrar os sertões, que sem isso é impossível[35]".
Apesar
dessa conquista lenta do paladar metropolitano pela comida indígena, e apesar
do caráter imperativo de sua adoção para se penetrar o sertão, como frisa Pedro
Taques, os colonizadores demoraram para assimilar todo o simbolismo do milho na
cultura nascente. Visto como "comida de bugre" e de animais, ele se
expandiu pelo mundo, em parte conduzido pelos portugueses, mas ocupando sempre
um lugar secundário no imaginário relativo à alimentação da colônia. Em
primeiro plano, o lugar de destaque coube à mandioca. Historiadores como frei
Vicente do Salvador e Gandavo se dedicaram amplamente ao elogio da mandioca,
desprezando o milho. A rigor, sequer se admitia, inicialmente, a origem
americana do milho! Com o tempo, contudo, ele se impôs e, em meados do século
XIX, já era uma das principais culturas no reino de Daomé, na África, de onde
vinha boa parte dos escravos dirigidos à Bahia[36].
Assim, a trajetória do milho é complexa também como questão historiográfica.
Sabemos
que ele chega à Europa com Colombo. Dez anos depois da sua chegada, há notícias
de seu cultivo em Castela, na Catalunha, na Andaluzia. Em Portugal, aparece por
volta de 1520, em torno da cidade de Lamego. Em 1532, já pode ser encontrado em
Bayeux, no sudoeste da França. Também chega a Veneza na década de 1530. É
levado pelos portugueses à Birmânia e à China em 1597 e, como observou David Lopes Ramos, jornalista
especializado em culinária, se
naturalizou de tal forma na Ásia que, quando começou a interessar aos europeus,
no século XVII, atribuíram-lhe uma origem dupla, americana e extremo-asiática,
"o que mostra bem a profundidade da
sua implantação, em apenas duzentos anos[37]"."
Se por um
lado a colonização portuguesa tinha uma diretriz prática muito clara, a ponto
de os colonizadores compreenderem a utilidade do milho tomado dos indígenas,
por outro sua historiografia foi mestra em misturar discussões botânicas,
relativas à classificação de várias plantas, questões históricas, como a disseminação
do Zea mays, e, ainda, aspectos mais
propriamente de léxico. Mas esse não foi um privilégio exclusivo deles. Em
artigo e 1967, M. D. W. Jeffreys faz um enorme esforço para identificar na África
a origem do milho, anterior mesmo à revelação de Cristóvão Colombo[38].
São ecos longínquos do quiproquó criado
pela confusão nominativa a respeito do milho, o que, ainda hoje, dificulta a identificação
do seu trajeto nos domínios lusitanos.
De fato,
os primeiros cronistas coloniais já registravam a ocorrência, nas terras
brasileiras, do milho-zaburro, que é primeiramente mencionado no Relato do piloto anônimo, documento da viagem
de Cabral, em 1500. Nos escritos de época, a nomenclatura se referir ao milho é
ampla. No Diálogo das grandezas do Brasil,
de Ambrósio Fernandes Brandão, do início
do século XVII, lê-se uma fusão de termos:
o "milho-maçaroca, que em nosso Portugal chamam zaburro e nas Índias Ocidentais maís, e
entre os índios naturais da terra, abati[39]."
Por outro
lado, sabe-se que o primeiro a grafar a palavra zaburro em português foi
Valentim Fernandes, em textos relativos às viagens frequentes a São Tomé, entre
1492 e 1506. Nos escritos, distingue o zaburro do milho-da-guiné e do
milho-dos-negros, cultivados no litoral seco saariano. O zaburro foi identificado
por Gonçalo Pires, em São Tomé, onde teria sido semeado pela primeira vez em
1502, e é provável que a palavra derive de za,
ou raiz, largamente utilizada na África Ocidental como sinônimo de sorgo, e burro, designativo dos árabes na Costa do Marfim; zaburro
significaria, portanto, em línguas africanas, algo como sorgo dos árabes. Essa
hipótese linguística é reforçada pelo uso de grano turco pelos italianos para
designar milho, e por expressões equivalentes em alemão, francês e inglês, além
de milho-da-índia, usada pelos portugueses. Valentim Fernandes refere-se
novamente ao milho em 1507, ao descrever a costa da Guiné e do Senegal, dizendo
que os povos da Gilofa tinham muito milho-zaburro, sendo o cuscuz o seu
principal alimento, também comum entre os mandingas[40].
No
princípio do século XVI, é Fernandes Brandão quem identifica o milho de
maçaroca com o milho-zaburro, e diz ser maís
o seu nome nas Índias Ocidentais. Em meados do século XVI, quando o piloto
anônimo de Vila do Conde passa por São Tomé, nota que os escravos se alimentam
de milho-zaburro, "que se chama maiz nas Ilhas Ocidentais".
Finalmente, na segunda edição do seu livro Delle
navigationi et viaggi, de 1554, Battista Ramusio fala do "miglio zaburro nelle Iindie occidentali Mahiz"
e inclui o desenho de uma espiga de
milho Zea mays[41].
A
confusão persiste, ainda no século XIX, e, no Dicionário de Morais,
edições de 1831, 1857 e 1874, milho-zaburro figura como sinônimo de Zea mays, apesar da origem americana da gramínea ter sido comprovada por Alphonse de Candolle
(1882), aclarando que, portanto, ela era
desconhecida no velho Mundo antes do contato colombiano[42]."
[1]
Ihering, Herman von. “A questão dos índios no Brasil”, p. 130
[2]
Idem, ibdem, p. 137.
[3] Müller, Franz.
Etnografia de los guarani del alto Paraná.
[4] Ver: Valden, Felipe Ferreira Vander. “As galinhas
incontáveis. Tupis, europeus e aves domésticas na conquista no Brasil”.
[5] Daniel, João. Tesouro
descoberto no Máximo Rio Amazonas. Em complemento, é importante registrar
os rumos modernos das pesquisas arqueológicas e antropológicas que vêm
revolucionando o entendimento do mundo indígena. Dentro dos estudos da
“agricultura antes da agricultura”, isto é, antes do período Neolítico, ao qual
se atribui a revolução agrícola, a arqueologia e a arqueobotânica nos dizem da
antiguidade de certos alimentos americanos domesticados, conforme a síntese que
apresenta número especial da revista Current
Antropology, v. 50 nº 5, out. 2009
[6]
Iriarte, José. “Norrowing the Gap. Exploring the Diversity of Early
Food-Production Economies in the Americas”, -pp. 677-80.
[7]
Vigne, Jean-Denis. Les débuts de
l´élevage: les origines de la culture, p. 40.
[8]
Hayden, Brian. “The Proof Is in the Pudding. Feasting and the Origines of
Domestiction”.
[9]
Cunha, MAnuaela Carneiro da; Lima, Ana Gabriela Morim. “How Amazonian
Indigenous Peoples contribute to biodiversity”.
[11]
Schaden, Egon. Aspectos fundamentais da
cultura guarani, p. 48
[12]
Idem, p. 51.
[13]
Müller, Franz, op. Cit., pp. 69 ss.
[14]
Schmitz, Pedro Ignácio; Gazzaneo, Marta. “O que comia o guarani pré-colonial”,
p. 99.
[15]
Müller, Franz, op. Cit., p. 71.
[16]
Ver: Schmitz, Pedro Inácio; Gazzaneo, Marta, op. Cit., Montoya, entretanto,
cita mais variedades — vermelhas, pretas, de pescoço, de cabeça redonda etc. —,
a maioria cultivada, mas algumas selvagens.
[17]
Schmitz, Pedro Ináio; Gazzaneo, Marta, op. Cit., p. 102.
[18] Bertoni,
Moisés. La civilización guarani, p.
88
[19]
Idem, p. 72.
[20]
Schmitz, Pedro Ignácio; Gazzaneo, Marta, op. Cit., p. 104.
[21] Schmitz,
Pedro Ignácio; Gazzaneo, Marta, op. Cit., p. 101.
[22] Müller,
Franz, op. Cit., p. 70
[23] Müller,
Franz, op. Cit., p. 72
[24]
Montoya, Antonio Ruiz de. Tesooro de la
lengua guarani, pp. 105-6
[25]
Idem, p. 353.
[26]
Idem, p.47.
[27]
Idem, p. 176.
[28]
Idem, p. 301.
[29]
Idem, p. 45.
[30]
Montoya, Antonio Ruiz de. Tesoro de la
lengua guarani, pp. 105-6.
[31]
“Por postre aquelllas raizes crudas cuyo sabor era como raiz de palo, aunque
era muy tierna”. Montoya, Antonio Ruiz de. Conqista
espiritual hecha por los religiosos de la Compañia de Jesus, en las Provincias
del Paraguay, Parana, Uruguay y Tape, p. 43
[33] Barros, Cândida. “O uso do tupi na Capitania de São
Paulo no século XVII”, p. 149.
[34] Ver: Basso, Rafaela. A cultura alimentar paulista: um civilização do milho? p. 70
[35] Leme, Pedro Taques de Almeida Paes. Informação sobre as minas de São Paulo,
p. 130.
[37]
Ramos, David Lopes. Sabores da lusofonia,
p. 34.
[38] Jeffreys, M.DW., “Pre-Columbian Maize. North of the
Old World Equator.
[39]
Para a abordagem dessas sinonímias, ver: Hue, Sheila Moura. Delícias do Descobrimento, pp. 84 ss.
[40]
Ver a respeito: Lains e Silva, Hélder. São Tomé e Príncipe e a cultura do café,
pp. 60-7
[41]
Idem, p.63
[42]
Warman, Arturo. La historia de um
bastardo: maiz y capitalismo, p. 41.
Nenhum comentário:
Postar um comentário