domingo, 10 de abril de 2011

Contra o glamour da profissão de chef

Por Marco Merguizzo, de Prazeres da Mesa
Um dos precursores da alta cozinha brasileira, o chef baiano Léo Filho defende as bases clássicas e ruge contra a glamourização da profissão
O sorriso fácil não esconde a indisfarçada timidez. Mas não se engane: por trás da fala e dos gestos suaves pulsa o coração de um leão. Um dos precursores na valorização dos ingredientes brasileiros na alta cozinha, o chef Léo Filho reinou como um dos principais expoentes da gastronomia brasileira entre os anos 1980 e 1990, quando comandou o restaurante francês do Hotel Maksoud Plaza, o Cuisine Du Soleil, em São Paulo.
Nessa época, serviu uma legião de celebridades internacionais como Frank Sinatra, Mick Jagger e o ex-vice-presidente dos Estados Unidos Dan Quayle. “Fui um dos primeiros a levar sapoti para Paris, e isso há quase 30 anos”, diz Léo, hoje professor e comandante no contemporâneo Eat Casual Food, na capital paulista, onde divide os fogões com Walter Cordeiro. O chef baiano nascido há 51 anos na cidade de Amargosa conversou com Prazeres da Mesa sobre sua trajetória e a importância da base culinária clássica em sua formação e na das novas gerações.
Prazeres da Mesa – Depois de comandar por mais de duas décadas o Cuisine Du Soleil, por onde você andou?
Léo Filho – Nos últimos anos, decidi ficar low profile e me dedicar à minha empresa de eventos e à carreira de professor numa faculdade de gastronomia, em São Paulo. Durante esse tempo, viajei muito pelo país e recebi muitos convites para voltar a trabalhar em restaurantes. Houve um cliente que recitou um cardápio inteiro de receitas que ele comeu há 30 anos no Maksoud! No Eat, também atuo como chef ao lado de outro promissor cozinheiro negro, Walter Cordeiro. Criamos e cozinhamos a quatro mãos.
É raro um negro como você chegar ao posto de chef. Há preconceito também no mundo da gastronomia?
Não senti muito esse problema ao longo da minha vida profissional. Agradeço ao Maksoud por isso. Mas confesso que tive de provar meu talento mais que outro cozinheiro branco, já que todo negro tem de demonstrar que é melhor mesmo. O fato é que tive uma ótima base familiar, que me incentivou a estudar e a lutar sempre. Mas discriminação nessa área é claro que há por conta da condição social e da baixa escolaridade da maioria dos negros brasileiros. Aliás, tenho um projeto que há muito acalento: criar um curso técnico de cozinheiro para pessoas de baixa renda. Tive um convite para fazer isso em Angola, mas gostaria de concretizar esse projeto aqui, numa favela de São Paulo. Esse é meu grande sonho que vou realizar, já que adoro um desafio e uma boa briga.
Com tantas atividades, qual é seu maior prazer profissional?
Além da minha família e de meu netinho Lucca, cozinhar é minha paixão, a minha vida.
E é mais fácil trabalhar hoje que naquela época?
Mais de 25 anos atrás, nos sentíamos – e éramos de fato – desbravadores. O Brasil tinha tudo por fazer nessa área. Pertenço a uma geração de chefs, da qual fazem parte Laurent (Suaudeau) e Claude (Troisgros), que teve a missão de formar fornecedores, capacitar mão de obra, prospectar produtos de qualidade e criar do zero uma logística de armazenamento. Muitas vezes trouxe trufa, foie gras, morilles e equipamentos de cozinha escondidos na mala.
Mas os clientes são gastronomicamente mais bem informados hoje, não?
O Brasil gosta muito de novidades, porém dá pouco valor ao que é clássico. Muito chef por aí segue modismos ou surfa naquela onda das chamadas 'releituras gastronômicas' - e, por vezes, releitura não passa de cópia malfeita. Sim, deve-se saber fazer espuma, mas também a base de um molho rôti. Uma máxima profissional em francês diz que “se você mistura muitos ingredientes sem critério, corre o risco de a receita parecer um carro alegórico”. É preciso respeitar o sabor dos ingredientes - sempre.
O ingrediente é tão importante quanto a maestria do chef?
Aprendi com meus grandes mestres, desde a época do Hilton, nos anos 1970, quando comecei na cozinha, que o ingrediente é a base de tudo. Portanto, minha resposta é obviamente que sim. Por vezes, é até mais importante que qualquer técnica culinária.
Lugar de chef é no batente ou na sala de aula?
Eu acho que é fifty to fifty. É preciso haver equilíbrio entre essas duas funções. Acredito que a ralação e a barriga no fogão são fundamentais para que o profissional não perca a mão. É preciso estudar e adquirir conhecimento acadêmico, gastronômico, mas continuar praticando. Hoje, há uma excessiva glamourização da profissão. O chef fica mais dando entrevista para jornalistas do que dentro da cozinha. Ainda na faculdade de gastronomia, o estudante fica mais preocupado em aparecer na revista e alcançar sucesso rápido do que em aprender. Isso me choca: eles querem ser famosos, simplesmente. É preciso galgar degrau por degrau e respeitar cada etapa.
O aumento de escolas de gastronomia no país é bom sinal?
Acho natural o interesse e muito bom esse crescimento, desde que haja qualidade nessas escolas. Porém, grande parte desses jovens não fica no mercado. Quando descobrem que têm de trabalhar no mínimo 15 horas, muitos jogam a toalha. Mas quem tem vocação fica. E vai vencer, claro, depois de muita luta e investimento pessoal.
E como você percebe a vocação de um aluno para a cozinha?
Só de olhar. A pessoa gosta tanto daquilo que faz que os olhos brilham. É o jeito de ela pegar a faca, como corta o legume. O verdadeiro cozinheiro trata o alimento como um diamante! Ah, sim, e ouve mais do que fala. Além do mais, deve gostar de trabalhar em equipe, ser disciplinado, concentrado e exigente consigo mesmo. Considero nossa profissão uma arte e exijo essa postura de minha equipe. A concentração para um artista é crucial. Trabalho em total silêncio. Não atendo sequer celular durante o trabalho. É dessa forma que trabalham os grandes chefs como Joël Robuchon, com quem estagiei na cozinha do Jamin, em 1987.
O que ainda falta para o Brasil ser reconhecido como um país de primeiro mundo na alta gastronomia?
Estamos próximos disso. O Brasil é a bola da vez hoje, já que temos diversidade culinária, matéria-prima rica e um grupo de chefs talentosos. Mas só temos de corrigir uma coisa: não é preciso fazer sucesso lá fora para, só então, batermos palmas aqui. Ou seja, esperar que a Madonna ou o Ferran Adrià elogiem nossos sapoti e priprioca para, só depois, reconhecermos isso.

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