Um dos precursores da
alta cozinha brasileira, o chef baiano Léo Filho defende as bases clássicas e
ruge contra a glamourização da profissão
O sorriso fácil não
esconde a indisfarçada timidez. Mas não se engane: por trás da fala e dos
gestos suaves pulsa o coração de um leão. Um dos precursores na valorização dos
ingredientes brasileiros na alta cozinha, o chef Léo Filho reinou como um dos
principais expoentes da gastronomia brasileira entre os anos 1980 e 1990,
quando comandou o restaurante francês do Hotel Maksoud Plaza, o Cuisine Du
Soleil, em São Paulo.
Nessa época, serviu
uma legião de celebridades internacionais como Frank Sinatra, Mick Jagger e o
ex-vice-presidente dos Estados Unidos Dan Quayle. “Fui um dos primeiros a levar
sapoti para Paris, e isso há quase 30 anos”, diz Léo, hoje professor e
comandante no contemporâneo Eat Casual Food, na capital paulista, onde divide
os fogões com Walter Cordeiro. O chef baiano nascido há 51 anos na cidade de
Amargosa conversou com Prazeres da Mesa sobre sua trajetória e a importância da
base culinária clássica em sua formação e na das novas gerações.
Prazeres da Mesa –
Depois de comandar por mais de duas décadas o Cuisine Du Soleil, por onde você
andou?
Léo Filho – Nos
últimos anos, decidi ficar low profile e me dedicar à minha empresa de eventos
e à carreira de professor numa faculdade de gastronomia, em São Paulo. Durante
esse tempo, viajei muito pelo país e recebi muitos convites para voltar a
trabalhar em restaurantes. Houve um cliente que recitou um cardápio inteiro de
receitas que ele comeu há 30 anos no Maksoud! No Eat, também atuo como chef ao
lado de outro promissor cozinheiro negro, Walter Cordeiro. Criamos e cozinhamos
a quatro mãos.
É raro um negro como
você chegar ao posto de chef. Há preconceito também no mundo da gastronomia?
Não senti muito esse
problema ao longo da minha vida profissional. Agradeço ao Maksoud por isso. Mas
confesso que tive de provar meu talento mais que outro cozinheiro branco, já
que todo negro tem de demonstrar que é melhor mesmo. O fato é que tive uma
ótima base familiar, que me incentivou a estudar e a lutar sempre. Mas
discriminação nessa área é claro que há por conta da condição social e da baixa
escolaridade da maioria dos negros brasileiros. Aliás, tenho um projeto que há
muito acalento: criar um curso técnico de cozinheiro para pessoas de baixa
renda. Tive um convite para fazer isso em Angola, mas gostaria de concretizar
esse projeto aqui, numa favela de São Paulo. Esse é meu grande sonho que vou
realizar, já que adoro um desafio e uma boa briga.
Com tantas
atividades, qual é seu maior prazer profissional?
Além da minha família
e de meu netinho Lucca, cozinhar é minha paixão, a minha vida.
E é mais fácil
trabalhar hoje que naquela época?
Mais de 25 anos
atrás, nos sentíamos – e éramos de fato – desbravadores. O Brasil tinha tudo
por fazer nessa área. Pertenço a uma geração de chefs, da qual fazem parte
Laurent (Suaudeau) e Claude (Troisgros), que teve a missão de formar
fornecedores, capacitar mão de obra, prospectar produtos de qualidade e criar
do zero uma logística de armazenamento. Muitas vezes trouxe trufa, foie gras,
morilles e equipamentos de cozinha escondidos na mala.
Mas os clientes são
gastronomicamente mais bem informados hoje, não?
O Brasil gosta muito
de novidades, porém dá pouco valor ao que é clássico. Muito chef por aí segue
modismos ou surfa naquela onda das chamadas 'releituras gastronômicas' - e, por
vezes, releitura não passa de cópia malfeita. Sim, deve-se saber fazer espuma,
mas também a base de um molho rôti. Uma máxima profissional em francês diz que
“se você mistura muitos ingredientes sem critério, corre o risco de a receita
parecer um carro alegórico”. É preciso respeitar o sabor dos ingredientes -
sempre.
O ingrediente é tão
importante quanto a maestria do chef?
Aprendi com meus
grandes mestres, desde a época do Hilton, nos anos 1970, quando comecei na
cozinha, que o ingrediente é a base de tudo. Portanto, minha resposta é
obviamente que sim. Por vezes, é até mais importante que qualquer técnica
culinária.
Lugar de chef é no
batente ou na sala de aula?
Eu acho que é fifty
to fifty. É preciso haver equilíbrio entre essas duas funções. Acredito que a
ralação e a barriga no fogão são fundamentais para que o profissional não perca
a mão. É preciso estudar e adquirir conhecimento acadêmico, gastronômico, mas
continuar praticando. Hoje, há uma excessiva glamourização da profissão. O chef
fica mais dando entrevista para jornalistas do que dentro da cozinha. Ainda na
faculdade de gastronomia, o estudante fica mais preocupado em aparecer na
revista e alcançar sucesso rápido do que em aprender. Isso me choca: eles
querem ser famosos, simplesmente. É preciso galgar degrau por degrau e
respeitar cada etapa.
O aumento de escolas
de gastronomia no país é bom sinal?
Acho natural o
interesse e muito bom esse crescimento, desde que haja qualidade nessas
escolas. Porém, grande parte desses jovens não fica no mercado. Quando
descobrem que têm de trabalhar no mínimo 15 horas, muitos jogam a toalha. Mas
quem tem vocação fica. E vai vencer, claro, depois de muita luta e investimento
pessoal.
E como você percebe a
vocação de um aluno para a cozinha?
Só de olhar. A pessoa
gosta tanto daquilo que faz que os olhos brilham. É o jeito de ela pegar a
faca, como corta o legume. O verdadeiro cozinheiro trata o alimento como um
diamante! Ah, sim, e ouve mais do que fala. Além do mais, deve gostar de
trabalhar em equipe, ser disciplinado, concentrado e exigente consigo mesmo.
Considero nossa profissão uma arte e exijo essa postura de minha equipe. A
concentração para um artista é crucial. Trabalho em total silêncio. Não atendo
sequer celular durante o trabalho. É dessa forma que trabalham os grandes chefs
como Joël Robuchon, com quem estagiei na cozinha do Jamin, em 1987.
O que ainda falta
para o Brasil ser reconhecido como um país de primeiro mundo na alta
gastronomia?
Estamos próximos
disso. O Brasil é a bola da vez hoje, já que temos diversidade culinária,
matéria-prima rica e um grupo de chefs talentosos. Mas só temos de corrigir uma
coisa: não é preciso fazer sucesso lá fora para, só então, batermos palmas
aqui. Ou seja, esperar que a Madonna ou o Ferran Adrià elogiem nossos sapoti e
priprioca para, só depois, reconhecermos isso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário