Ceia natalina que se preze tem carne de porco, seja na
forma de tender, seja no tradicional pernil, em geral assado ao forno por horas,
perfumando a casa. Para famílias grandes ou pequenas, o lombo também sempre foi
uma opção, na companhia de farofa, arroz, frutas secas, molho de laranja ou
maracujá. Mas, num momento em que o porco é cada vez mais celebrado na
gastronomia, cultuado por chefs e protagonista de receitas inovadoras mundo
afora, por que não fugir do óbvio e investir em pratos que saem do comum?
Essa foi a proposta que lançamos para dois chefs
paulistanos apaixonados por esse generoso animal, do qual tudo se aproveita.
André Mifano, do italiano Vito, e Flávio Miyamura, do recém-inaugurado Miya,
aceitaram o convite na hora e inovaram não só nos cortes, como também nos
métodos de preparo e no tipo de porco utilizado. Mifano, aliás, é o mais
entusiasmado com a temática: adora os suínos desde pequeno, tem tatuagens do
animal espalhadas pelo corpo e uma vasta coleção de bibelôs inspirada no
assunto. “Ainda lembro de mim, molequinho, indo com meu pai comer porco. Nunca
faltou essa carne em casa, por mais que fôssemos uma família judaica”, diz ele,
ressaltando que o suíno também é restrito em diversas religiões.
Apesar de ser o queridinho dos chefs atuais, no Brasil
e no mundo, Mifano também recorda que os suínos amargaram um longo período sem
relevância. “Isso aconteceu porque todo mundo tinha a ideia de que o porco é
sujo, que transmite doenças. Por isso, a carne era feita sempre esturricada,
para evitar contaminação”, afirma o chef. Mas, com a modernização das criações
– com foco em higiene, bem entendido –, isso mudou.
Restrições à parte, o fato é que os suínos se prestam
às mais diferentes preparações culinárias, com muito campo ainda para explorar
além da tríade pernil-bisteca-lombo. Com esse desafio em mente, a dupla se pôs
em ação para montar o “Natal do porco” (como apelidamos informalmente esta
reportagem). A festa começa com as criações de Mifano: para beliscar e dar
início aos trabalhos, o chef sugere a copa lombo de queixada, receita exclusiva
de embutido que demorou três meses para ser aperfeiçoada. “Não dá para negar minha
veia italiana, e não existe uma mesa italiana de Natal sem um bom antepasto”,
afirma o chef.
Servida em fatias finíssimas, a copa tem um sabor muito
delicado, sem excesso de sal e perfumado com cravo e canela, completamente
diferente do que estamos acostumados com embutidos desse tipo. Para acompanhar,
fatias de bolo de alecrim tostadas ao fogo e, por que não?, um generoso fio de
bom azeite de oliva. Casamento perfeito. Aqui, o inusitado também fica por
conta da matéria-prima: a queixada, um tipo de porco-selvagem nativo do Brasil.
“Não podemos esquecer que temos suínos muito bons, que já eram consumidos pelos
indígenas muito antes da chegada dos portugueses, que trouxeram o porco-branco,
comum”, afirma o chef.
Mifano vinha fazendo experiências com embutidos e
carnes curadas há algum tempo, mas o incentivo para criar a copa lombo com a
carne desse animal veio do amigo Alex Atala, dos paulistanos D.O.M. e Dalva e
Dito, também defensor irrestrito dos produtos nacionais. “Comecei por incentivo
do Alex, primeiro para fazer um embutido, o cacciatore, para a Retratos do
Gosto (marca de produtos especiais capitaneada por Atala), que está por ser
lançado. Mas fui pegando gosto e estudando até chegar à copa lombo”, diz
Mifano. O processo de produção da iguaria é longo – demora 38 dias para ficar
pronto –, mas o trabalho vale a pena. “Por enquanto, só eu estou fazendo, e o
Vito é o único lugar do mundo em que o público pode comer esse produto.”
Depois dessa entrada mais que exclusiva, Mifano sugere
outra criação que promete ser destaque na mesa natalina: o copo de porco. A
receita nada mais é do que uma adaptação da tradicional rillette francesa,
preparada com a carne confitada do animal e coberta com uma camada de banha –
mas servida num copo “de boteco”. Para quem torce o nariz para a simples menção
da palavra banha, Mifano garante que, da maneira que a prepara, o ingrediente é
não apenas saboroso, como saudável. “Uso a banha das costas do animal, que é a
branca, sem veias, sem nada. Derreto e separo o que tiver de impureza. Tudo
isso em fogo muito, muito baixo, para não saturar a gordura.”
Para usar no apetitoso copo de porco, a banha é
temperada com sal e batida com um fouet, ficando então fofa e macia. Na hora de
servir, basta acompanhar com pedaços de mostarda de Cremona (conserva italiana
à base de frutas), pão torrado e sal negro do Havaí ou outro sal gourmet.
Pode-se comer, ou não, a gordura – vai do gosto do freguês.
Seguindo para os pratos principais, o cozinheiro
recomenda um corte suíno pouco usual: o ossobuco. “Ao contrário do de boi,
típico da gastronomia italiana, o ossobuco de porco não tem tanto tutano, mas é
muito saboroso. Fica perfeito com uma redução de seu próprio caldo de
cozimento”, afirma. Para acompanhar, em vez das lentilhas, tão comuns nas
festas de fim de ano, entra o feijão-vermelho, encontrado pelo chef em Minas
Gerais.
Novidade e tradição
A saga dos pratos natalinos à base de porco continua
com as criações de Flávio Miyamura. Depois de passar quatro anos trabalhando no
espanhol Eñe, na capital paulista, o chef tomou fôlego para investir em seu
Miya, restaurante de pegada contemporânea, aberto há cinco meses. Assim como
Mifano, Miyamura também é fã das carnes suínas e desde o início quis incluir
pratos com esse ingrediente no cardápio. “Sempre gostei de porco, e
naturalmente fui muito influenciado pelos espanhóis, que amam esse bicho. Além
disso, sou descendente de japoneses, que tradicionalmente comem muito essa
carne”, afirma Miyamura.
Para a ceia de Natal, o cozinheiro sugere três pratos:
a barriga de porco com purê de castanha-portuguesa; carré suíno com cuscuz
marroquino e legumes; e paleta de leitão recheada com damasco seco e nozes, com
farofa de cebola caramelizada. “Gosto muito de trabalhar com barriga, bochecha,
costela. O brasileiro ainda não está muito acostumado a esses cortes, está
começando agora esse movimento. Mas a barriga virou um dos pratos mais pedidos
da casa.”
Corte bem gordo e úmido, a barriga ganhou a associação
das castanhas tanto pela doçura do ingrediente – que casa perfeitamente com o
sabor suíno – quanto pela lembrança natalina que elas trazem. “É um prato
substancioso, nobre, que destaca a carne macia com a untuosidade da gordura e a
crocância da pele”, diz o chef. Para Miyamura, é o tipo de comida que merece
ser servida com um bom vinho tinto, de preferência com taninos bem marcados,
capazes de “limpar” o paladar entre uma garfada e outra. “Um Malbec argentino
cai bem.”
O carré foi pensado para ser uma opção mais simples e
rápida, para famílias pequenas ou casais. “É fácil de fazer, basta grelhar a
carne e está pronto. Essa receita é ideal para quem não tem uma cozinha grande
ou não quer ficar o dia inteiro com algo no forno”, diz o chef. Como guarnição,
o tradicional cuscuz marroquino ganhou a companhia de legumes – mas Miyamura
lembra que também ficaria muito bom com castanhas e frutas secas.
No caso de famílias grandes e ruidosas – como a sua,
que serve de sushi a lasanha na noite de Natal –, a opção suína mais indicada é
a paleta. “Ela é menor e tem menos gordura que o pernil.” Esse corte é
proveniente dos membros dianteiros do animal, por isso a quantidade de banha é
reduzida. Por ser pequeno, também é mais fácil de enrolar e rechear – na versão
de Miyamura, os damascos e as nozes, transformados em pasta, fazem a função de
recheio, dando ainda mais sabor à carne. “O prato combina a tradição desses
ingredientes aos cortes suínos diferentes. Natal é tão tradicional, tão
familiar, não dá para fazer muita estripulia. Mas dá para fugir do lombo com
maracujá”, brinca ele.
Onde comprar
Para reproduzir as criações dos chefs em casa com
sucesso é necessário encontrar bons fornecedores de suínos – em especial,
aqueles que se disponham a comercializar cortes menos comuns, produzidos com
rigoroso controle de qualidade. Mifano garante seu fornecimento com a Porco
Feliz, de São Paulo, que desenvolveu, com o chef, o primeiro corte que rendeu
fama ao cozinheiro, a barriga de porco, servida desde o início do Vito. Em
geral, o chef compra o animal inteiro, de 15 a 25 quilos, e faz os cortes no
restaurante. “Assim consigo aproveitar tudo, até a cabeça.”
A especial queixada, exclusiva para a copa lombo, vem
de Gonzalo Barquero, da Cerrado Carnes Naturais, que produz ainda cateto –
outro suíno brasileiro, e javali europeu, entre outros itens, e está prestes a
lançar no mercado um novo tipo de porco, resultado do cruzamento de várias
espécies, ainda sem nome.
Com fazendas espalhadas por várias regiões brasileiras,
Gonzalo atende desde os chefs (90% de seu público) até o consumidor final,
produzindo, em números mensais, 1,5 tonelada de javali, 750 quilos de queixada
e cerca de 200 a 300 quilos de cateto. “O porquinho novo deve começar com 1
tonelada por mês. Queremos lançá-lo no início do ano que vem”, diz Gonzalo.
Outro bom fornecedor de carnes especiais é a Cowpig.
Com fazenda em Boituva, no interior de São Paulo, a empresa produz cortes
diferenciados de bovinos, suínos, ovinos e bubalinos, com distribuição no
Estado de São Paulo. “Também temos uma produção de embutidos, linguiças
artesanais, bacon. Já fornecemos para empórios e casas de alimentos gourmet,
mas a ideia é abrir loja própria em Alphaville e duas unidades em São Paulo”,
diz Renato Sebastiani, diretor administrativo e comercial da marca. Entre os
cortes especiais de porco, há prime rib, picanha, carré francês e até bifes de
coxão mole e alcatra. Opções para transformar o porco, antes relegado à
mesmice, a rei da cozinha.
CARRÉ DE PORCO COM
CUSCUZ MARROQUINO E LEGUMES
4 porções
4
carrés de porco com cerca de 250 g cada um
300
g de cuscuz marroquino
70
g de manteiga sem sal
800
ml de água fervente
30
ml de azeite de ervas
2
miniabobrinhas
1
cenoura média
1
cebola roxa
Flor
de sal e pimenta-do-reino a gosto
Óleo
para fritar
Azeite de
ervas
1
litro de azeite de oliva
1
maço de ciboulette (cebolinha verde francesa)
1
maço de alecrim fresco
1
maço de tomilho fresco
1
maço de sálvia fresca
1
maço de dill (endro) fresco
Azeite de
ervas
Triture bem todas as ervas, coloque-as em uma garrafa
com o azeite de oliva e deixe descansar por pelo menos um dia; quanto mais
tempo, melhor será o sabor do azeite; reserve na geladeira.
Cuscuz
1 Coloque o cuscuz numa tigela e acrescente a água
fervente, a manteiga e um pouco de sal. 2 Mexa devagar para o cuscuz hidratar e
cozinhar; reserve. 3 Corte a miniabobrinha, a cebola roxa e a cenoura em
brunoise (cubinhos) e junte ao cuscuz. 4 Tempere com flor de sal, pimenta e
azeite de ervas, mexa bem e reserve.
Carré
1 Aqueça uma frigideira em fogo alto até começar a
soltar fumaça. 2 Coloque um fio de óleo na frigideira, tempere o carré com sal
e pimenta e grelhe até ficar dourado. 3 Vire e repita o processo para grelhar o
outro lado. 4 Se necessário, finalize o cozimento no forno até o ponto
desejado.
Montagem
1 Arrume o cuscuz no canto de um prato e coloque o
carré por cima. 2 Finalize com um fio de azeite de ervas e um pouco de flor de
sal sobre a carne.
PALETA DE LEITÃO
RECHEADA COM DAMASCOS SECOS E NOZES
4 porções
1
paleta de leitão com cerca de 2 kg
250
g de cenoura
200
g de damasco seco
120
g de nozes-pecãs
50
g de sal grosso
2
cebolas médias
1
garrafa de vinho tinto Cabernet Sauvignon
1
maço de alecrim fresco
1
maço de tomilho fresco
1
cabeça de alho
1
alho-poró
1
talo de salsão
Sal
e pimenta-do-reino a gosto
Farofa de
cebolas caramelizadas
1
kg de cebola
500
g de farinha de mandioca flocada
150
g de manteiga
Sal
e pimenta-do-reino a gosto
Farofa de
cebolas caramelizadas
1 Corte a cebola em meia-lua fina, coloque em uma
frigideira e refogue com a manteiga ao fogo médio. 2 Quando a cebola começar a
refogar, abaixe o fogo e deixe até ficar marrom-escura. 3 Acrescente a farinha
de mandioca, misture muito bem e deixe no fogo médio, até a farinha ficar
ligeiramente crocante. 4 Acerte o tempero com sal e pimenta-do-reino e reserve.
Paleta
1 Desosse completamente a paleta de leitão e abra, de
modo que toda a peça fique com, no máximo, 1,5 cm de altura; reserve. 2 Coloque
o damasco e as nozes em um processador e triture bem, quase até formar uma
pasta. 3 Espalhe por toda a paleta no lado da carne. 4 Com muito cuidado,
enrole e amarre bem firme com um barbante, deixando a pele para o lado de fora.
5 Coloque em uma assadeira e reserve.
Marinada
1 Misture o salsão com a cebola, a cenoura e o
alho-poró, todos cortados em pedaços médios. 2 Acrescente o alecrim, o tomilho
e o alho. 3 Finalize com o vinho tinto e o sal grosso. 4 Espalhe pela paleta e
deixe marinar por cerca de 5 horas.
Finalização
1 Cubra a paleta com papel-alumínio e asse no forno a
150 °C por 5 horas. 2 Verifique de hora em hora, para ver como anda o
cozimento. 3 Quando a carne estiver macia, retire o papel-alumínio, aumente o
forno para 190 °C e deixe até a pele dourar. 4 Retire da assadeira, corte o
barbante e reserve em local quente. 5 Coe o caldo de cozimento, acerte o
tempero com sal e pimenta-do-reino e sirva com a carne e a farofa.
BARRIGA DE PORCO COM
PURÊ DE CASTANHA-PORTUGUESA
4 porções
1
kg de barriga de porco
100
g de sal grosso
80
g de manteiga sem sal
15
g de páprica picante
15
g de páprica doce
50
ml de caldo de carne
4
dentes de alho
Flor
de sal e pimenta-do-reino a gosto
Purê de
castanhas
200
g de castanhas-portuguesas descascadas
1
litro de leite integral
1
pedaço de canela em pau
80
g de açúcar
Barriga de
porco
1 Misture o sal grosso com as pápricas e cubra a
barriga com essa mistura. 2 Deixe marinar por 30 minutos e lave com água para
retirar todo o tempero. 3 Coloque a barriga dentro de um saco para embalar a
vácuo, junte a manteiga e os dentes de alho. 4 Feche a embalagem retirando o
máximo de ar possível. 5 Cozinhe a barriga em banho-maria a 70 °C por 9 horas.
6 Retire a embalagem do banho-maria e coloque imediatamente na água com
bastante gelo, para que o preparo resfrie rapidamente; reserve.
Purê
1 Coloque as castanhas em uma panela alta com o leite,
a canela em pau e o açúcar. 2 Leve ao fogo e cozinhe em fogo médio até as
castanhas ficarem macias. 3 Bata em um processador de alimentos até obter um
purê liso e homogêneo; reserve.
Montagem
1 Esquente a barriga em banho-maria, retire da
embalagem e leve ao forno bem quente, para que a pele fique dourada e crocante.
2 Esquente o purê de castanhas ao fogo baixo e, se necessário, acrescente um
pouco de leite para acertar a textura. 3 Porcione a barriga e tempere os
pedaços com sal e pimenta. 4 Disponha o purê e a barriga em um prato, finalize
com um fio de caldo de carne e sirva imediatamente.
Receitas do chef Flávio Miyamura, do Miya, São Paulo,
SP.
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